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“Pelo amor de Deus, não leia isso”

julho 1, 2013 5 comentários

704_341627669289860_59767093_n(Imagem do videoclipe da música “Quadradinho de Oito”)

“Ih, olha lá, o cara trouxe até a bíblia!” – foi o que o policial, bem humorado, comentou com um dos seus colegas durante a manifestação.

Talvez as letras douradas e a capa dura azul-escuro que protegia quatrocentas páginas amareladas tenham confundido o policial.

O caso se deu num dia em que, como quase sempre, saí de casa com um livro na mão. Depois de um compromisso na avenida Paulista, resolvemos – eu, o livro e alguns amigos – dar uma olhada na (estranha) manifestação, daquelas já com jeito de ressaca. Não a ressaca das dores de cabeça, mas as marítimas, em que as correntes ficam sem direção.

Sem nada muito interessante além das incongruências do ajuntamento de pessoas tão díspares, já estava indo em direção ao metrô quando passei por meia dúzia de policiais tranquilos e um deles fez o tal comentário sobre a bíblia que eu carregava.

Ia ser engraçado se ele soubesse que a história da qual eu não largava não era a das injustiças e desventuras de um mundo antigo, atestadas por profetas e apóstolos, mas sobre um injustiçado mais recente; alguém que, indiferente à penúria da vida terrena, não pedia ajuda a Deus e nem religião tinha. Um ex-prefeito de uma cidade de Alagoas, eleito aos 35 anos de idade, que, diante da insistência e da ameaça velada do agente penal inquirindo-lhe sobre sua religião enquanto respondia um questionário de entrada em uma casa de detenção, assim respondeu: “O senhor não vai me convencer que tenho uma religião qualquer. Faça o favor de escrever. Nenhuma”.

Também não ia deixar de ser interessante se o policial militar soubesse o que o autor pensava sobre militares e registrava naquele livro: “energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis”. Alguém que dizia que o que afligia não era a opressão, e sim saber que “a opressão se erigiu em sistema”, como o sistema policial, talvez.

Sessenta anos depois de sua morte, este homem será mais uma vez homenageado em virtude de sua carreira literária, dessa vez durante a décima primeira edição da FLIP (de 03 a 07 de julho, em Parati). Certamente reprovaria qualquer homenagem. Severo, chegou a dizer a um leitor, sobre seu primeiro livro, Caetés: “Pelo amor de Deus, não leia isso. É uma porcaria”. E confessou a penúria durante a elaboração de seu terceiro romance; “um romance difícil”, escrito com a ajuda de muita cachaça, onde um único capítulo lhe consumiu “vinte e sete dias de esforço para matar uma personagem” e que foi publicado durante o período em que o autor passava preso, mesmo considerando tal publicação uma leviandade, pois, segundo ele, se tratava de um texto cheio de defeitos, que carecia de cortes e emendas sem conta.

Escreveu romances, crônicas, contos e livros infantis e, apesar da modéstia, Graciliano Ramos foi diversas vezes premiado em vida, publicado em outros países e admirado por companheiros de escrita como Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Mal sabia o policial, portanto, que eu levava naquele livro as palavras de um monumento da história da literatura brasileira. Palavras estas que só não foram suficientes para descrever seu período de prisão porque a vida não lhe foi o bastante e não pôde concluir suas memórias. Viveu apenas sessenta anos, alguns dos quais passou trabalhando no serviço público e criticando suas aberrações, como neste trecho do seu livro póstumo que passeava comigo, Memórias do Cárcere: “[…] a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria. Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso dávamos um salto perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes”.

No entanto, decorridos agora mais sessenta anos desde sua morte, continua ganhando vida a cada livro que se abre, a cada palavra com que tentam defini-lo, a cada homenagem que lhe fazem, como esta que acontecerá nesta semana: cinco dias dedicados à memória de alguém. Para quê? – me pergunto. E facilmente encontro a resposta: muito menos para que lembremos quem ele foi, e muito mais para que saibamos, nestes tempos de personalidades televisivas, quem devemos admirar.

Danilo Gonçalves