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“Pelo amor de Deus, não leia isso”

704_341627669289860_59767093_n(Imagem do videoclipe da música “Quadradinho de Oito”)

“Ih, olha lá, o cara trouxe até a bíblia!” – foi o que o policial, bem humorado, comentou com um dos seus colegas durante a manifestação.

Talvez as letras douradas e a capa dura azul-escuro que protegia quatrocentas páginas amareladas tenham confundido o policial.

O caso se deu num dia em que, como quase sempre, saí de casa com um livro na mão. Depois de um compromisso na avenida Paulista, resolvemos – eu, o livro e alguns amigos – dar uma olhada na (estranha) manifestação, daquelas já com jeito de ressaca. Não a ressaca das dores de cabeça, mas as marítimas, em que as correntes ficam sem direção.

Sem nada muito interessante além das incongruências do ajuntamento de pessoas tão díspares, já estava indo em direção ao metrô quando passei por meia dúzia de policiais tranquilos e um deles fez o tal comentário sobre a bíblia que eu carregava.

Ia ser engraçado se ele soubesse que a história da qual eu não largava não era a das injustiças e desventuras de um mundo antigo, atestadas por profetas e apóstolos, mas sobre um injustiçado mais recente; alguém que, indiferente à penúria da vida terrena, não pedia ajuda a Deus e nem religião tinha. Um ex-prefeito de uma cidade de Alagoas, eleito aos 35 anos de idade, que, diante da insistência e da ameaça velada do agente penal inquirindo-lhe sobre sua religião enquanto respondia um questionário de entrada em uma casa de detenção, assim respondeu: “O senhor não vai me convencer que tenho uma religião qualquer. Faça o favor de escrever. Nenhuma”.

Também não ia deixar de ser interessante se o policial militar soubesse o que o autor pensava sobre militares e registrava naquele livro: “energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis”. Alguém que dizia que o que afligia não era a opressão, e sim saber que “a opressão se erigiu em sistema”, como o sistema policial, talvez.

Sessenta anos depois de sua morte, este homem será mais uma vez homenageado em virtude de sua carreira literária, dessa vez durante a décima primeira edição da FLIP (de 03 a 07 de julho, em Parati). Certamente reprovaria qualquer homenagem. Severo, chegou a dizer a um leitor, sobre seu primeiro livro, Caetés: “Pelo amor de Deus, não leia isso. É uma porcaria”. E confessou a penúria durante a elaboração de seu terceiro romance; “um romance difícil”, escrito com a ajuda de muita cachaça, onde um único capítulo lhe consumiu “vinte e sete dias de esforço para matar uma personagem” e que foi publicado durante o período em que o autor passava preso, mesmo considerando tal publicação uma leviandade, pois, segundo ele, se tratava de um texto cheio de defeitos, que carecia de cortes e emendas sem conta.

Escreveu romances, crônicas, contos e livros infantis e, apesar da modéstia, Graciliano Ramos foi diversas vezes premiado em vida, publicado em outros países e admirado por companheiros de escrita como Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

Mal sabia o policial, portanto, que eu levava naquele livro as palavras de um monumento da história da literatura brasileira. Palavras estas que só não foram suficientes para descrever seu período de prisão porque a vida não lhe foi o bastante e não pôde concluir suas memórias. Viveu apenas sessenta anos, alguns dos quais passou trabalhando no serviço público e criticando suas aberrações, como neste trecho do seu livro póstumo que passeava comigo, Memórias do Cárcere: “[…] a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria. Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso dávamos um salto perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes”.

No entanto, decorridos agora mais sessenta anos desde sua morte, continua ganhando vida a cada livro que se abre, a cada palavra com que tentam defini-lo, a cada homenagem que lhe fazem, como esta que acontecerá nesta semana: cinco dias dedicados à memória de alguém. Para quê? – me pergunto. E facilmente encontro a resposta: muito menos para que lembremos quem ele foi, e muito mais para que saibamos, nestes tempos de personalidades televisivas, quem devemos admirar.

Danilo Gonçalves

  1. margareth
    julho 9, 2013 às 2:41 pm

    Pois é Dã o povo brasileiro só vai mudar seu jeito de agir e pensar, se isufluir da cultura, que anda espalhada nesse “mundão afora”. Cabe a nós, educadores, levá-los a conhecer esse outro lado da moeda, pois se esperarmos de outros…

    Lindo texto!

  2. Anderson
    julho 2, 2013 às 1:27 pm

    Infelizmente é muita “modinha” e pouca cultura aqui no Brasil.

  3. Claudia Estevão
    julho 2, 2013 às 2:01 am

    E como não cair nas graças de um escritor como esse? Seja artigo ou seja livro(que tenho certeza que é ótimo), suas palavras alcançam e nos convencem a querer mais e mais, além de nos dar uma tremenda vontade de adentrar em livros literários e jamais sair deles.. Rs

    Adoreeii
    Dan…

  4. Vanessa Gallan
    julho 1, 2013 às 3:32 pm

    Esses jovens não querem saber de Literatura, querem ficar vendo novelas e dizer ” Sou A inteligência pura”, “salguei a santa ceia”. A TV rouba -lhes muito tempo!!!
    Infelizmente isso acontece o tempo todo e sinto pelos jovens que não tem interesse em ler um bom livro como Vidas Secas ou ler um bom artigo como o seu!!!!

    • Danilo
      julho 2, 2013 às 3:19 am

      Tem tanta criança na FLIP (e na Flipinha!) que até acho q tudo podia ter jeito. Pena que são pouquíssimos eventos literários, mas que eles aprendem a gostar, isso aprendem (=

      Brigado pelo comentário!

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