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Posts Tagged ‘olhos negros’

Olhos Negros

novembro 25, 2011 2 comentários

Mas o escravo quase liberto já ia longe em sua corrida pela trilha que levava até sua casa, próxima às margens do rio da Lavação. Quando chegou, o Sol já era apenas metade da divindade que costumava ser em esplendor.

Mal entrou em casa e já chorava diante dos filhos e da mulher, a quem confessou seu erro. Mas ainda assim, mesmo vendo o marido fraquejar com a desgraça se abatendo sobre eles, ela conseguia sorrir enquanto lhe pedia calma.

Néscios e Dóreos logo se fizeram ver descendo a colina. Vinham serpenteando no caminho aceso pela claridade das suas tochas. Quando chegaram, chamaram por Mocareg e avisaram que queimariam a casa toda se ele não se entregasse. Sem resposta, e sob um Sol que bem alheio a tudo aquilo escurecia cada vez mais o dia, partiu dos Néscios a primeira tocha a atingir o alpendre da casa.

Gritaram mais algumas palavras de ordem, mas a resposta que ouviram foi apenas o choro distante de uma criança. Assim sendo, um dos Dóreos sugeriu que empurrassem a janela ou a porta e ateassem fogo em algum cômodo para obrigar a família a sair de casa, e assim fizeram até que a fumaça enegrecesse ainda mais o dia, mas não viram nenhum sinal da família enquanto a casa ardia em tons de vermelho.

A mesma escuridão que havia traído Mocareg e a mesma fumaça que castigava os olhos de sua família acobertaram sua fuga. Guiando sua filhinha e apoiando a mulher ainda dolorida do parto e com o filho no colo, desceram todos o barranco e se atiraram no rio da Lavação. Menos Turuf, que foi acomodado no Pequeno-Sol assim que Mocareg percebeu que flutuariam.

Quando a nuvem negra se dissipou no tempo e o Sol também começou a se desanuviar em esplendor, fez brilhar, já longe dali, o prato de ouro polido que tinha conduzido o recém-nascido rio abaixo até uma nova aldeia, onde foi encontrado por mulheres que lavavam roupas.

Perceberam que algo terrível tinha acontecido. Ele chorava, talvez de fome, talvez de medo ou frio, mas sobreviveria: estava enrolado no tecido de uma túnica de Mocareg que Rauora havia sobreposto a um xale seu, e trazia atado ao pulso uma fitinha que Nhamã tinha lhe dado de presente. E essa era toda sua herança.

No colo de uma delas se aquietou e as lágrimas pararam de verter dos seus olhos negros, deixando apenas o brilho úmido que os clareava um pouco. E ali mesmo ganharia o nome pelo qual o conhecemos: chamaria-se Futuro.

Postado por: Danilo Gonçalves

  

Olhos Negros

novembro 23, 2011 2 comentários

Quando chegou em casa com os pães que sempre trazia escondido do palácio sua mulher Rauora amamentava o pequeno recém-nascido. Pediu que ela não temesse os acontecimentos e prometeu orgulhá-la. Mas se algo desse errado, queria que falasse dele para Turuf como um grande homem, assim um dia serviria de inspiração ao filho.

Com um beijo em cada um, entrou na noite em direção ao pátio central da aldeia. A escuridão do céu já começava a se diluir por detrás das montanhas brancas quando deu o sinal que todos os moradores já esperavam, ressoando o som do sino por todo o vale.

Em poucos minutos, conforme o costume, toda a aldeia aguardava para ser guiada ao palácio. Naquela manhã de festa os rostos vermelhos e os corpos gelados não trabalhariam a terra. Seriam agraciados com a visita ao palácio e poderiam admirar a beleza que jamais teriam, mas alguns adultos iam movidos também por um outro sentimento: a esperança de reconhecerem seus próprios filhos entre os rebentos adotados pelo palácio.

Os mais ansiosos seguiam Mocareg tão de perto que quase pisavam as barras de sua túnica de tecido rústico. Os demais seguiam flutuando numa falação feliz que só cessou ao chegarem às portas do palácio.

Entraram com a simplicidade de sempre, mas em silêncio solene. Alguns traziam presentes a serem oferecidos ao mais novo Dóreo, algo como azeites, perfumes e uma espécie de chocolate.

Ao abrir a principal porta da sala da veneração e permitir a entrada do povo, Mocareg indicou-lhes os lugares da tribuna que deveriam ocupar, e logo o silêncio cedeu espaço a uma excitação sussurrada: “Eles estão dormindo?”, “Está quase na hora”, “Onde está o Pequeno-Sol?”, “Onde está Mocareg?”.

Mocareg cumpria seu dever matinal, só que dessa vez ansioso e trêmulo. No mezanino da construção piramidal abria a janela por onde entravam os primeiros raios de sol que desciam pela parede contrária até atingirem o altar onde devia estar o Pequeno-Sol. E assim fez. E assim foi. Mesmo sem culto algum e com todos os Dóreos dormindo, o Sol entrou meticulosamente pela abertura diante dos Néscios que assistiam incrédulos àquele milagre. Ninguém mais dava pela falta do Pequeno-Sol.

Como aquele amanhecer tinha sido possível? Por que então veneravam os Dóreos se eles não eram semideuses que cuidavam do nascer do Sol? Se não eram mais do que belos exemplares do mesmo povo Néscio?

O barulho acordou os primeiros Dóreos, que logo chamaram por Mocareg. Mas ele não se sentia mais escravo e discursava do púlpito para o povo, dizendo que ele mesmo tinha escondido o Pequeno-Sol para que fosse provado o que agora se via: os Dóreos não têm poder nenhum sobre o Sol e é evidente que estamos sendo enganados e explorados há séculos.

A revolta dos Dóreos com a situação foi bem menor que a dos Néscios, que já gritavam palavras de ódio contra seus líderes, mas quando a situação parecia indicar um derramamento de sangue incontrolável, sobreveio o que de mais inesperado poderia prever Mocareg: o Sol minguou e a sala da veneração começou a escurecer.

Ao se darem conta disso, todos foram levados por curiosidade para o lado de fora do palácio e, olhando para o céu, perceberam que havia algo de errado: uma mancha negra cobria toda a borda esquerda do Sol, maculando a perfeição de seu círculo.

A este ponto, um dos Dóreos percebeu sua salvação e encontrou o culpado ideal. Era ele, Mocareg, o responsável pela fúria do Sol que agora castigaria a todos deixando de iluminar o dia por não ter sido cultuado como mandava o costume.

“Vamos sacrificar Mocareg e implorar o perdão do Sol enquanto é tempo!”

O último capítulo sai ainda nesta semana

Postado por: Danilo Gonçalves

  

Olhos Negros

novembro 22, 2011 2 comentários

Henrique Vaz Duarte - óleo sobre tela - 100x100cm - site do artista: http://www.vazduarte.net/antigo

Guardou o Pequeno-Sol na sacola e trancou as portas da sala da veneração com todos os Dóreos lá dentro. Quando acordassem do efeito do chá de Valeriana que havia preparado veriam o altar vazio e, se tudo desse certo, todos se assombrariam com o acontecimento: amanheceria.

Planejou meticulosamente o roubo. Durante o último anoitecer, depois de ter colhido a raiz do sono em quantidade suficiente para adormecer todos os Dóreos, saiu distribuindo casa por casa, e em papéis dourados do palácio, o comunicado convocando os súditos a comparecerem à cerimônia da invocação, algo que só era permitido quando refletiam um novo rebento no Pequeno-Sol, um prato dourado que apenas os Dóreos deviam ver e venerar todas as madrugadas como forma de rogar pelo raiar do dia. Após o quê, em fila, passavam um a um diante do Pequeno-Sol para assim admirarem sua própria beleza dourada refletida no material divino.

Com o roubo do Pequeno-Sol Mocareg esperava provar que o Sol não era evocado pelos habitantes do palácio, e sim que vinha por conta própria abençoar as terras da aldeia. Suspeitava de tal fato desde que do alto de uma das montanhas que circundavam a cidade tinha visto, ainda criança, o Sol iluminando o Vale Vazio bem antes de sua luz chegar à aldeia e ao palácio. Mas como todos acreditavam que o Sol só subia ao céu graças àquela vigília que os Dóreos faziam antes do amanhecer, os palacianos dominavam com essa verdade a aldeia que, assim, lhes devia todas as bênçãos que o Sol antecipadamente concedia às plantações durante seu passeio pela grande abóbada azul.

O pensamento de Mocareg era simples, mas roubar o Pequeno-Sol podia acabar com a sua vida se estivesse enganado e o Sol não aparecesse por não ter sido evocado. Por outro lado, se estivesse certo e os Dóreos não fossem quem todos pensavam, também não poderiam mais cobrar tributos nem condenar os Olhos Negros à morte.

E lembrar dessas condenações fez com que seguisse com o plano e corresse para longe do palácio onde era escravo desde o dia em que se recusou a entregar aos Dóreos a sua filha Nhamã, vinda ao mundo com os provocativos olhos negros; olhos condenados pela lei do povoado a não verem a luz de um segundo dia.

Para os Dóreos o Sol não gostava dos Olhos Negros, pois à medida que não franziam sua fronte diante da luz solar como faziam seus olhos azuis, desafiavam a força de seu deus. Além do quê, temendo que fossem capazes de ver beleza em lugares insuspeitados, como nos próprios Néscios – seus súditos – diziam serem olhos condenados pela natureza a não enxergarem a verdadeira beleza.

Assim sendo, Nhamã não escapou de seu destino. Diante da recusa do pai em entregá-la ao sacrifício, o Conselho Dóreo sentenciou: cegavam-na e escravizavam o pai até o nascimento de um filho com olhos azuis.

No entanto, naquela noite prestes a acabar havia nascido Turuf, o segundo filho de Mocareg. O segundo filho com olhos negros que os Dóreos não tardariam a cegar.

Se tivesse olhos azuis o que de melhor podia lhe acontecer era ser escolhido por sua beleza para o convívio com os Dóreos no palácio, o que para os outros pais já era uma grande honra, mesmo que seus filhos vivessem mais prisioneiros do que ele havia se tornado ao ser escravizado. Só assim não trabalhariam sob o Sol e viveriam uma vida contemplativa. Mas se não fosse escolhido trabalharia a terra como toda criança, ajudando a aldeia a sustentar os moradores do palácio.

Pois bem, estava decidido a fazer o que fosse possível para provar a idolatria vazia àquele prato de ouro polido que trazia em sua sacola. Só assim tiraria a autoridade dos Dóreos e evitaria a cegueira do filho.

Conto em três capítulos. Continua amanhã.

Postado por: Danilo Gonçalves