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Olhos Negros

Henrique Vaz Duarte - óleo sobre tela - 100x100cm - site do artista: http://www.vazduarte.net/antigo

Guardou o Pequeno-Sol na sacola e trancou as portas da sala da veneração com todos os Dóreos lá dentro. Quando acordassem do efeito do chá de Valeriana que havia preparado veriam o altar vazio e, se tudo desse certo, todos se assombrariam com o acontecimento: amanheceria.

Planejou meticulosamente o roubo. Durante o último anoitecer, depois de ter colhido a raiz do sono em quantidade suficiente para adormecer todos os Dóreos, saiu distribuindo casa por casa, e em papéis dourados do palácio, o comunicado convocando os súditos a comparecerem à cerimônia da invocação, algo que só era permitido quando refletiam um novo rebento no Pequeno-Sol, um prato dourado que apenas os Dóreos deviam ver e venerar todas as madrugadas como forma de rogar pelo raiar do dia. Após o quê, em fila, passavam um a um diante do Pequeno-Sol para assim admirarem sua própria beleza dourada refletida no material divino.

Com o roubo do Pequeno-Sol Mocareg esperava provar que o Sol não era evocado pelos habitantes do palácio, e sim que vinha por conta própria abençoar as terras da aldeia. Suspeitava de tal fato desde que do alto de uma das montanhas que circundavam a cidade tinha visto, ainda criança, o Sol iluminando o Vale Vazio bem antes de sua luz chegar à aldeia e ao palácio. Mas como todos acreditavam que o Sol só subia ao céu graças àquela vigília que os Dóreos faziam antes do amanhecer, os palacianos dominavam com essa verdade a aldeia que, assim, lhes devia todas as bênçãos que o Sol antecipadamente concedia às plantações durante seu passeio pela grande abóbada azul.

O pensamento de Mocareg era simples, mas roubar o Pequeno-Sol podia acabar com a sua vida se estivesse enganado e o Sol não aparecesse por não ter sido evocado. Por outro lado, se estivesse certo e os Dóreos não fossem quem todos pensavam, também não poderiam mais cobrar tributos nem condenar os Olhos Negros à morte.

E lembrar dessas condenações fez com que seguisse com o plano e corresse para longe do palácio onde era escravo desde o dia em que se recusou a entregar aos Dóreos a sua filha Nhamã, vinda ao mundo com os provocativos olhos negros; olhos condenados pela lei do povoado a não verem a luz de um segundo dia.

Para os Dóreos o Sol não gostava dos Olhos Negros, pois à medida que não franziam sua fronte diante da luz solar como faziam seus olhos azuis, desafiavam a força de seu deus. Além do quê, temendo que fossem capazes de ver beleza em lugares insuspeitados, como nos próprios Néscios – seus súditos – diziam serem olhos condenados pela natureza a não enxergarem a verdadeira beleza.

Assim sendo, Nhamã não escapou de seu destino. Diante da recusa do pai em entregá-la ao sacrifício, o Conselho Dóreo sentenciou: cegavam-na e escravizavam o pai até o nascimento de um filho com olhos azuis.

No entanto, naquela noite prestes a acabar havia nascido Turuf, o segundo filho de Mocareg. O segundo filho com olhos negros que os Dóreos não tardariam a cegar.

Se tivesse olhos azuis o que de melhor podia lhe acontecer era ser escolhido por sua beleza para o convívio com os Dóreos no palácio, o que para os outros pais já era uma grande honra, mesmo que seus filhos vivessem mais prisioneiros do que ele havia se tornado ao ser escravizado. Só assim não trabalhariam sob o Sol e viveriam uma vida contemplativa. Mas se não fosse escolhido trabalharia a terra como toda criança, ajudando a aldeia a sustentar os moradores do palácio.

Pois bem, estava decidido a fazer o que fosse possível para provar a idolatria vazia àquele prato de ouro polido que trazia em sua sacola. Só assim tiraria a autoridade dos Dóreos e evitaria a cegueira do filho.

Conto em três capítulos. Continua amanhã.

Postado por: Danilo Gonçalves

  

  1. Simone Húngaro
    novembro 22, 2011 às 6:35 pm

    Fiquei com gosto de quero mais… Vou ter que aguardar a segunda e a terceira partes…

    • Danilo Gonçalves
      novembro 22, 2011 às 7:13 pm

      Brigado, Simone!
      Vi que gostou do quadro tb 🙂
      Vamos ver se as próximas imagens tb agradam.

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